CRISTINA CAMARGO, EM SÃO PAULO
Como muitos meninos brasileiros, o professor Eder Pires de Camargo, da Unesp de Ilha Solteira, sonhava ser jogador de futebol. A seleção brasileira de 1982, comandada por Telê Santana, alimentou as fantasias do garoto. Ele tinha nove anos e vibrou com jogadas de craques como Sócrates e Zico. Ainda enxergava e jogava bola nos campinhos de Lençóis Paulista (SP), onde nasceu e passou a infância.
O sonho de Eder, no entanto, durou pouco. Desde criança ele tem uma perda contínua da visão por causa de uma doença degenerativa, a retinose pigmentar.
Não deu para ser jogador profissional e, depois dos 20 anos, interrompeu também as peladas com os amigos. Eder ficou cego. Mesmo assim, continuou atleta: participou de provas coletivas em campeonatos de atletismo e completou a São Silvestre em 2000 e 2001.
Na profissão, encontrou seu caminho em outra área. Fez o curso de licenciatura em física na Unesp de Bauru e chegou ao pós-doutorado. Prepara-se agora para defender a tese de livre-docência. Virou professor universitário e encaminha suas pesquisas para uma área que domina como ninguém: o ensino de física para deficientes visuais.
Especialista em inclusão
O professor cego Eder Pires de Camargo (de camisa clara) usa materiais diferentes para ensinar alunos com deficiência
Eder teve a ajuda de professores e colegas de classe para superar obstáculos. “Em 1992, quando entrei na faculdade, o computador com voz ainda não havia chegado ao Brasil. O departamento de física tinha apenas um computador 286”, lembra.
No início, os alunos faziam rodízio para ajudar Eder a estudar. Cada dia, um deles lia o conteúdo dos livros e o auxiliava em relatórios e exercícios.
O revezamento acabou quando saíram as notas das primeiras provas. Eder, que frequentava as aulas à noite, passava o dia inteiro nas salas dos professores fazendo perguntas. Quando não estava lá, estudava na casa de uma amiga. O resultado: ótimas notas. A companhia do estudante cego passou a ser disputada pelos colegas.
“Eu conseguia resolver muitos exercícios complicados”, justifica. “Havia uma colaboração dos dois lados.”
Depois, com o avanço da tecnologia, conquistou autonomia por meio de programas que permitem o acesso a conteúdos digitalizados. O computador é uma ferramenta importante no dia a dia do professor. Ajuda nas pesquisas, leituras, estudos e planejamentos.
Baseado em sua própria trajetória, Eder percebeu que a construção de maquetes táteis-visuais podem ajudar muito os alunos deficientes visuais a entender fenômenos da física. São modelos bi ou tridimensionais, construídos com barbantes, placas de isopor e arames. Ao tocar as maquetes, os alunos cegos conseguem entender, por exemplo, a condução da eletricidade.
Na maquete criada por ele, uma tábua fica inclinada com pregos e esferas. A inclinação indica a potência elétrica. Quanto maior a inclinação, maior a potência. Os pregos simulam a estrutura de material condutor, e as esferas representam os elétrons.
No ensino de óptica, ele simula a dispersão e refração da luz por meio de um barbante. O aluno segura o material para poder compreender o que acontece. Numa sala de aula para alunos sem deficiência, retas dos fios de luz são traçadas na lousa.
MOTIVAÇÃO
Eder questiona o ensino tradicional baseado apenas na memorização de fórmulas e textos, o que pode desmotivar os alunos, diz. Também avalia que hoje em dia tudo é muito pronto e automático, o que não estimula o raciocínio. As maquetes podem ser uma forma de viabilizar o envolvimento dos alunos.
Eder concluiu o pós-doutorado aos 34 anos. Fez mestrado e doutorado na Unicamp e trabalha para que professores da rede estadual utilizem recursos capazes de incluir, de fato, os alunos portadores de deficiência visual. É autor de três livros e participa de palestras, seminários e cursos sobre a inclusão. “Quem iria imaginar que o menino cabisbaixo no fundo da sala chegaria tão longe?”, afirma.
Para o professor, a sala de aula funciona como terapia. “Não quero sair dela nunca mais.”
Em seu quarto livro, ainda não lançado, ele fala sobre o que deve ser comum e o que deve ser específico no ensino para alunos com e sem deficiência.
A rotina acadêmica não o afastou da paixão pelo futebol. Palmeirense fanático, Eder acompanha os jogos, torce, sofre e até pensa em se envolver de alguma forma na administração de seu time do coração.