Introdução
O tratamento de crianças com bexiga neurogênica tem melhorado dramaticamente nas últimas três décadas, devido à aplicação do cateterismo intermitente limpo em combinação com anticolinérgicos orais, a fim de se suprimir a hiper reflexia detrusora (1). Utilizando-se esta forma e terapia, a incidência de deterioração do trato urinário superior tem diminuído e a taxa de continência aumentado (1). Contudo, um elevado número de pacientes ainda necessitam da realização de ampliações vesicais em razão de elevadas pressões e baixa capacidade vesicais. Isto se deve principalmente a falta de efetividade das drogas anticolinérgicas orais ou presença de efeitos colaterais das mesmas.
A principal droga utilizada por via oral no tratamento da bexiga neurogênica é o cloridrato de oxibutinina. A ação farmacológica da oxibutinina inclui o bloqueio de receptores colinérgicos ou relaxamento direto do músculo detrusor, bem como um efeito analgésico local na mucosa vesical (2). Entre os efeitos da oxibutinina se incluem a diminuição do tônus vesical, supressão de contrações involuntárias do detrusor e diminuição da frequência de micções (3). Contudo, clinicamente, o uso desta droga é muitas vezes limitado pela intolerância sistêmica dos seus efeitos colaterais como boca seca, rubor da pele, constipação e borramento de visão, que estão presentes em 40% a 80% dos casos(4,5). Isto faz com que a oxibutinina seja administrada em doses subterapêuticas ou até mesmo descontinuada. Portanto, é importante pesquisar vias alternativas de administração da droga a fim de minimizar as desvantagens desta por via oral. O objetivo deste estudo é revisar os principais dados da literatura referentes à utilização de oxibutinina por via intravesical para o tratamento da disfunção do trato urinário inferior.
Farmacologia
A oxibutinina, inicialmente usada clinicamente por Diokno e Lapides (6), tem-se demonstrado eficaz no tratamento de pacientes com bexiga neurogênica, enurese e espasmos pós-prostatectomia. No entanto, frequentes efeitos colaterais são encontrados com o uso da oxibutinina intravesical. Moyses et al. reportaram que de 30 pacientes tratados com esta droga para instabilidade detrusora, 17 tiveram efeitos colaterais: 13 com boca seca, 3 com sonolência e 1 com borramento de visão (4). Cinco pacientes não completaram o curso do tratamento devido aos efeitos adversos da droga.
Embora a instilação vesical seja uma abordagem terapêutica comum para os tumores vesicais superficiais(7), há uma experiência limitada na literatura com este método de administração para o tratamento da hiper contratilidade vesical, como primeiro trabalho sendo apresentado somente em 1988 (8). Õbrink et al. investigaram os efeitos sintomáticos da administração de brometo de emeprônio (100 mg, uma vez por semana) em pacientes com urgência miccional (9), Higson et al. o da lidocaína a 1%, uma vez ao dia (10), Mattiason et aí. usou o verapamil, 3 x l0-~ M, uma vez ao dia~11~ e Brendier et aí. a oxibutinina, 5 mg, duas vezes ao dia~8~. Gotoh et al. ('2) relataram que houve uma diminuição significante da contratilidade vesical à aceticolina, após a administração intravesical de verapamil in vivo e in vitro de bexiga de coelhos (7,5 ou 10 mg).
Kato et al. foram os primeiros a comparar os efeitos de agentes anticolinérgicos, antiespasmódicos e bloqueadores dos canais de cálcio na mediação da resposta pressórica produzida por estimulação de eletrodos e por ação do betanecol (13). Eles notaram que todas as drogas foram efetivas na supressão da contratilidade vesical, sendo que a oxibutinina foi a que mais inibiu as contrações produzidas pelo betanecol (95%). Entretanto, neste estudo, a atropina e a oxibutinina intravesical suprimiram contrações decorrentes do betanecol de forma muito mais acentuada do que aquelas produzidas por estimulação elétrica. Estes achados corroboram as noções de que estes agentes têm efetiva ação anticolinérgica, e que, embora a oxibutinina tenha ação musculo-relaxante, esta se dá em uma extensão muito menor do que a sua ação anticolinérgica. Outro achado interessante foi a lenta reabilitação da bexiga ao seu estado inicial após a suspensão da droga, o que indica que esta forma de terapia tem um efeito persistente, o que permitiria a administração de doses em intervalos mais longos.
A oxibutinina, uma amina terciária, é um bloqueador colinérgico fraco, mas é um potente anestésico local e efetivo agente espamolítico para uma variedade de tecidos musculares. Ela possui um efeito anestésico local duas vezes maior que a lidocaína (14). Como anticolinérgico, a oxibutinina tem 1/3 da potência da propantelina e 1/25 da atropina, mas seu efeito espasmolítico é duas vezes maior do que a da primeira e dez vezes a da última (15). A oxibutinina é prontamente absorvida pelo trato gastrointestinal e tem uma duração de ação prolongada (13).
Resultados da oxibutinina intravesical
Em estudo inicial em cães, Mohler detectou que a oxibutinina intravesical alcançou melhores níveis de relaxamento vesical que a administração oral da droga (16). A oxibutinina intravesical reduziu a média de pressão vesical, aumentou a capacidade da bexiga e reduziu as contrações vesicais em doses, nas quais as da droga oral não obteve efeito. A primeira experiência clínica em 11 pacientes (9 com bexiga neurogênica e 2 pós-prostatectomia) utilizando intravesical foi publicada por Brendier e col. (8). Eles usaram tabletes de oxibutinina 5 mg, esmagados e diluídos em 20 a 30 ml de água, duas vezes ao dia. Um paciente foi excluído do estudo por dificuldade em manter a solução intravesical devido à intensa hiper reflexia detrusora. Todos os dez pacientes restantes apresentaram melhora subjetiva dos sintomas urinários e todos se tornaram continentes após o tratamento. Houve um aumento da capacidade vesical de 50 a 200 ml (25% a 100% da capacidade antes do tratamento) após a terapia e um aumento da média da capacidade vesical de 224 ml pré-tratamento para 360 ml no pós, sendo esta diferença estatisticamente significante. Quatro pacientes descontinuaram o tratamento, sendo dois por opção própria e dois por necessidade de ampliação vesical, apesar da melhora relativa dos parâmetros urodinâmicas. Não houve efeitos colaterais.
Apesar do sucesso clínico da instilação intravesical de oxibutinina já demonstrado em diversos ensaios clínicos (7,8, 7-19, 20-24), o mecanismo de ação não está claro. O fato de que efeitos colaterais sistêmicos comumente observados com a administração oral estão geralmente ausentes com este tipo de aplicação (8), poderia levar a conclusão de que a oxibutinina não é absorvida pela bexiga e que seu efeito seria principalmente local. Trabalhos passaram a ser realizados no intuito de estudar ao mecanismo de ação da droga por via intravesical.
Massad et al. estudaram nove pacientes (5 a 19 anos de idade), sendo oito com disfunção vesical neurogênica por mielomeningocele e um com síndrome de Hinman (17). O estudo compreendeu pacientes que desenvolveram efeitos colaterais após um tratamento inicial com oxibutinina oral e que depois foram mantidos com esta droga por via intravesical. Utilizou-se tabletes de oxibutinina esmagados e dissolvidos em água esterilizada a temperatura ambiente (7,5 mg de oxibutinina/ 30 ml de água), administrados três vezes ao dia com a bexiga vazia. Ao mesmo tempo, eles usaram a mesma dosagem em quatro cães saudáveis. Os níveis séricos de oxibutinina foram mensurados tanto após a administração oral quanto após a intravesical. De interesse, eles notaram que a concentração plasmática da droga foi maior com a via intravesical do que com a oral. A oxibutinina foi detectada na circulação mesmo após oito horas da administração da droga por via intravesical. Todos os pacientes tiveram melhora da sintomatologia, sendo esta melhora incompleta em dois. O pH urinário e a presença de bacteriúria não afetaram os níveis de concentração plasmática. Este estudo comprova que a oxibutinina é rapidamente absorvida pela parede vesical, visto o alto índice de concentração sérica na maioria dos pacientes. Além disso, mesmo a sua utilização em pacientes que apresentaram efeitos colaterais com o uso oral, não acarretou efeitos adversos que necessitasse a suspensão da droga. Contudo, estes autores usaram diferentes dosagens entre a medicação oral e vesical, que é uma crítica ao método deste estudo.
Outra série também estudou o mecanismo de ação da oxibutinina intravesical (20). Foram avaliados seis pacientes tratados com uma mesma dose de oxibutinina oral e intravesical. Os níveis sanguíneos da droga foram determinados. Demonstrou-se que após a ingestão oral o pico plasmático foi alcançado em uma hora, enquanto após a administração intravesical o pico plasmático foi detectado em três horas. Além disso, os níveis plasmáticos de oxibutinina após seis horas foram significantemente maiores com a aplicação intravesical do que com a oral. Após o pico de uma hora depois da administração oral, os níveis plasmáticos caíram significantemente. Estes achados confirmam que a oxibutinina intravesical é absorvida pela circulação e sugerem que o alto pico inicial após a ingestão oral da droga pode ser o responsável pela maior incidência de efeitos colaterais da droga oral. Além disso, a maior durabilidade na circulação da oxibutinina intravesical pode justificar a maior efetividade desta.
A menor ação da oxibutinina oral pode dever-se também ao metabolismo da droga pela "primeira passagem". O principal metabólito da oxibutinina no fígado é N-desetil oxibutinina (NDO). Este metabólito tem ação anticolinérgica, contudo esta é menor do que a da droga intacta. Em razão do metabolismo de primeira passagem, níveis mais elevados de NDO e mais baixos da droga intacta são encontrados após a administração oral, quando comparada a intravesical (23). Esta pode ser a razão da maior efetividade da oxibutinina administrada por via intravesical.
Bonney et al. estudaram os efeitos locais da oxibutinina na mucosa vesical de ratos (18). Eles não detectaram qualquer evidência de alteração da mucosa ou da parede vesical diretamente relacionada a exposição à oxibutinina. Apesar de não haver ainda nenhum estudo em humanos de biópsias vesicais após um período longo de uso local da oxibutinina, estes resultados sugerem haver segurança com relação aos efeitos tópicos desta droga. Ainda mais, os ratos que receberam altas doses de oxibutinina não apresentaram ulcerações vesicais, diferindo daqueles que receberam doses menores, sugerindo um certo efeito protetor da oxibutinina à mucosa vesical. Entretanto, Yokoyama et al., em estudo também em ratos, notaram que altas concentrações da droga foram irritantes a mucosa vesical destes animais (25). Além disso, o pH elevado tornou a droga pouco solúvel, aumentando seu potencial de irritabilidade local.
Outro estudo, desta vez em coelhos, também evidenciou que é seguro o contato da oxibutinina com a bexiga(26). Eles compararam os efeitos colaterais locais do tablete de oxibutinina esmagado e dissolvido em solução salina com a droga em seu princípio ativo dissolvido. Houve uma maior presença de infiltração eosinofílica na parede vesical nos animais cujo o tablete esmagado foi utilizado, o que sugere que esta forma de uso pode causar reação alérgica local.
Connor et al. (20) analisaram crianças com bexiga neurogênica por mielodisplasia que eram incontinentes antes do tratamento intravesical e que apresentaram falha do tratamento com oxibutinina oral ou suspensão do uso da mesma por efeitos adversos acentuados. Estes autores notaram melhora na capacidade vesical, na média da pressão intravesical e na continência urinária. O dado mais valioso deste estudo foi o valor preditivo do cistograma realizado três horas após a administração da oxibutinina. Com este cistometrograma "precoce" foi possível predizer acuradamente a resposta a terapia em todos os pacientes que apresentaram aumento da capacidade vesical e em 11 de 13 que tinham uma diminuição da pressão de enchimento vesical.
Enzelberger et al. (27) demonstraram em estudo prospectivo e randomizado que a oxibutinina intravesical é eficaz no tratamento da instabilidade vesical idiopática em mulheres adultas(26). Pannek e col. evidenciaram que em pacientes com lesão de medula espinhal e que apresentaram insucesso terapêutico com a oxibutinina oral, a utilização desta droga por via intravesical foi segura e efetiva e pode evitar a ampliação vesical na maioria dos casos(24) .
Descontinuidade da terapia
Tem-se demonstrado uma elevada taxa de interrupção do uso da oxibutinina intravesical. Numa série de 23 crianças com bexiga neurogênica por mielomeningocele, 15 (65%) descontinuaram o tratamento (21). Razões para a descontinuidade com a terapia foram efeitos colaterais em 6, inefetividade clínica em 5, inconveniência no uso em 4. Das crianças que interromperam o tratamento por inconveniência, o principal argumento foi a indisponibilidade de pessoal treinado na escola para realizar ou assistir o procedimento. Inconveniência foi a razão de interrupção do tratamento em 50% e 93% dos pacientes de Connor e Kasabian et al., respectivamente (19, 22).
Um estudo recente foi realizado como objetivo de avaliar a utilização do princípio ativo da oxibutinina dissolvido, em vez do tablete esmagado, a fim de tentar diminuir a taxa de interrupção do uso da droga (24). Eles estudaram 15 crianças com hiperatividade detrusora, que receberam por via intravesical 0,2 mg/kg (máximo de 5 mg) de uma solução estável de oxibutinina (5 mg/ 5 ml, pH 5.85), duas vezes ao dia. O tratamento aumentou significantemente a capacidade cistométrica máxima e diminuiu a pressão de enchimento vesical, o que demonstrou que a utilização da droga pura diluída é eficaz (os demais ensaios clínicos demonstraram apenas a efetividade da droga obtida por esmagamento dos tabletes). Além disso, apenas 13% das crianças abandonaram o tratamento, num seguimento mínimo de 24 meses. Não houve infecção urinária ou efeitos colaterais durante o tratamento. Estes resultados sugerem que o princípio ativo da oxibutinina em seu princípio ativo é mais eficaz que o tablete esmagado
Perspectivas futuras
Notadamente a oxibutinina utilizada por via intravesical é mais efetiva e acarreta menos efeitos colaterais que a utilizada por via oral. No entanto, as razões para isso são apenas supostas. É provável que a ação direta da droga na mucosa vesical, a ausência do metabolismo de primeira passagem pelo fígado e o tempo mais prolongado de ação sejam os responsáveis pela ação mais efetiva da oxibutinina intravesical que a oral. Também, um pico de ação mais rápido e agudo parecem ocasionar uma maior taxa de efeitos colaterais na oxibutinina via oral. Mais estudos precisam ser realizados para um melhor entendimento da farmacocinética e farmacodinâmica da oxibutinina administrada nas diferentes vias. As doses de oxibutinina intravesical usadas são empíricas. Os trabalhos utilizam diferentes dosagens e com diversas frequências de administração. É necessário se padronizar a posologia para que os trabalhos sejam comparativos e que se dissemine o uso desta via de administração na prática clínica. Além disso, mais artigos analisando a utilização da droga pura no seu princípio ativo precisam ser realizados para comprovar a superioridade desta sobre o tablete esmagado.
Em resumo, a oxibutinina intravesical é efetiva e representa uma boa alternativa aos pacientes como bexiga hiperativa refratária a ação da droga por via oral ou quando esta acarreta efeitos colaterais que impossibilitam o seu uso. Cursos terapêuticos com oxibutinina intravesical parecem representar uma boa alternativa para os pacientes que são candidatos a ampliação vesical.
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