Por Luciane Molina
As maiores dificuldades ao relacionar-se com pessoas cegas são, sem dúvida, manifestadas por pessoas que enxergam e que desconhecem essa realidade. Julgadas, muitas vezes, como entraves ou barreiras atitudinais, essas gafes cometidas nesse convívio reforça a necessidade de divulgar informações que permitam que a sociedade esteja mais atenta com relação às especificidades desse grupo de pessoas.
Apesar do princípio que sustenta uma atitude inclusiva estar ligado a igualdade de oportunidades, esse processo requer a compreensão sobre a diversidade e o enfrentamento de quaisquer atitudes que, nem nivelem os iguais, nem segmentem os grupos por suas diferenças, físicas, intelectuais ou sensoriais.
O preconceito, muitas vezes, não está estabelecido ou afirmado num primeiro contato, mas surge como uma defesa ao “desconhecido” e, por isso, digo sempre que somos nós, pessoas com deficiência, as grandes responsáveis pelo estigma criado pela sociedade para justificar o “despreparo” em lidar com as situações. Logo, toda situação que geraria um desconforto ou uma ruptura de paradigmas tende a ser marcada pela resistência e pelo julgamento prévio, com receio gerado pela desinformação.
Para que essa relação seja estabelecida de maneira mais leve e natural, evitando os possíveis constrangimentos, tanto vivenciados pela pessoa cega, quanto praticados por quem enxerga, decorrentes da falta de informação, ou seja, sem intenção de prejudicar, ofender ou discriminar, devemos investir numa ampla rede de informações. Hoje, através das redes sociais e dos veículos de comunicação essa realidade tem se tornado mais real e possível. O papel da pessoa com deficiência visual para esse enfrentamento e mudança de posturas também é decisivo, pois deve partir dela o desejo de receber um tratamento digno, confortável e natural. A partir do momento em que elas saem dos seus “esconderijos”, passando a frequentar o ambiente escolar, disputar uma vaga no mercado de trabalho, consumir produtos e serviços, elas assumem o papel de protagonismo, lutando por direitos e conquistam independência e autonomia.
A mídia vem contribuindo, algumas vezes, de forma bem positiva, para informar e quebrar algumas barreiras criadas pelo desconhecimento. Outras, porém, reforça ainda mais o “preconceito”, com abordagens piegas e sensacionalistas, na sua maioria, protagonizadas por histórias belíssimas, mas, porém que evidenciam o caráter de superação da ausência, da falta, do limite, da compensação, do apesar de ser deficiente… gerando a falsa expectativa de que o diferente não pode ser normal.
Comunicação Escrita e Lida
Se cerca de 80% de todas as pistas que recebemos chega pela visão, a pessoa com deficiência visual depende do desenvolvimento de habilidades sensoriais, motoras e cognitivas que, quando integradas, são capazes de possibilitar a melhor interação com o meio externo, captando pistas e internalizando por meio dos outros sentidos. Assim a comunicação com o mundo é viabilizada, tornando-se possível desempenhar quaisquer função social.
A leitura e a escrita, por exemplo, se tornaram possível graças ao invento do francês Louis Braille. Tendo ficado cego ainda criança, desenvolveu um código de leitura tátil e escrita capaz de representar as letras, os numerais, os sinais de pontuação, por meio de um arranjo combinatório entre 6 pontos em relevo. A leitura é feita pelo tato da ponta dos dedos que, deslizando levemente sobre o papel, num movimento sincronizado, permite a leitura numa velocidade equivalente a leitura visual. Hoje, quase dois séculos após o surgimento do método Braille, ele ainda representa a grande porta de entrada do cego no mundo da literatura e da alfabetização escolar. Tocar as letras com os dedos, sentir a textura do papel, o cheiro das folhas e converter estímulos táteis em palavras, sentenças e textos, dando-lhes significado e sentido, representa um ato de cidadania e de autonomia.
Além da leitura tátil, a pessoa cega também possui outras alternativas de acesso ao universo literário. Trata-se dos formatos de livros falados e livros digitalizados. O primeiro compreende uma obra que, geralmente é lida e gravada por alguém. O livro falado possui características singulares, como a descrição de figuras, a soletração de palavras estrangeiras ou de difícil entendimento e o fato de não utilizar trilhas musicais ou efeitos sonoros, para não interferir no entendimento da obra, que deverá ser construído pelo próprio ouvinte/leitor. esse formato de livro é destinado especialmente para cegos, pois parte da leitura branca, sem interferências de sonoplastia. A pessoa que lê para cegos é designado ledor e precisa seguir cuidadosamente uma boa entonação, velocidade constante e agradável e conhecer os elementos descritivos que facilitam na tradução das imagens pra linguagem oral. Já o livro digitalizado é aquele formato que pode ser lido num computador, com auxílio de programas leitores de tela. eles não podem estar em formatos de imagem, pois o leitor de telas não o decodificará para fala sintetizada.
Computadores e Dispositivos Móveis
A tecnologia representa um grande avanço para a humanidade e amplia as possibilidades da pessoa cega. Os computadores equipados com leitores de tela permitem que todas as pessoas se comuniquem sem quaisquer diferenciação, consigam executar tarefas comuns às atividades escolares, laborais e de entretenimento com as mesmas oportunidades.
O equipamento utilizado por cegos ou por pessoas que enxergam não é distinto, e para os cegos, basta apenas instalar um software leitor de tela, que transforma todas as informações dispostas graficamente no monitor, em sons. As vozes podem ser artificiais ou mais naturais, dependendo das configurações e programas adicionais instalados. Algumas limitações, que impedem o pleno acesso às informações a partir do uso de computadores, estão relacionadas a arquitetura dos programas ou home pages, quando construídas sem que os desenvolvedores levem em conta algumas diretrizes internacionais de acessibilidade.
Em síntese, podemos acessar e trabalhar com aplicativos muito básicos, como no caso do bloco de notas, até executar tarefas mais avançadas, como navegar na internet, instalar programas, criar e manipular planilhas. As possibilidades são inúmeras. Onde quer que haja um computador, existe a possibilidade de torná-lo acessível e, qualquer que seja a tarefa, há também a possibilidade de executá-la utilizando um leitor de tela.
E não são apenas os computadores os protagonistas dessa inclusão digital. Os celulares, smarthphones e tabletes também tem ganhado a preferência entre os cegos por causa da acessibilidade trazida pelos leitores de tela. Cada plataforma possui seu próprio recurso de acessibilidade, incluindo comandos e gestos com os dedos que permitem o manuseio de aparelhos touch.
As Fotografias, as Imagens e as Cores
Como vivemos numa cultura visuocêntrica e não podemos negar a existência das imagens como signos relevantes e predominantes na construção das relações estabelecidas com as pessoas e objetos, devemos torná-las acessíveis também para os cegos, não privando-os dessa realidade.
A audiodescrição, que é uma modalidade de tradução visual, permite que a pessoa cega possa compreender uma imagem, seja estática ou em movimento, por meio da descrição de suas características físicas, no caso de objetos, de pessoas e de expressões, ou da descrição das ações para as cenas em movimento. Existem algumas diretrizes que favorecem o entendimento e a construção de significados quando narrados pelo locutor, por isso, é importante que o profissional audiodescritor conheça bem o teor da obra, seja filme, teatro, exposição, musical, dança, solenidade, fotografia, quadro, entre outros, e elabore seu roteiro de acordo com aquilo que se pretende transmitir.
A audiodescrição na televisão brasileira é uma conquista recente, cuja obrigatoriedade limita-se apenas há 2 horas semanais de programação, com previsão de expandir gradativamente. Ainda está disponível apenas em canais abertos e em localidades com sinal digital.
Podemos dizer que a arte da “audiodescrição” pode se fazer presente, de maneira informal, quando os olhos de alguém possibilita enxergar alguma imagem ainda invisível, mas que a descrição permita desvendá-la de maneira plena, mesmo sem vê-la. As cores também estão presentes na vida da pessoa cega por meio de características ligadas aos sentidos e que são associadas com sons, cheiros, sabores ou texturas.
Auxiliar uma pessoa cega
Aqui talvez estejam concentradas as maiores dúvidas. Por isso, selecionei alguns tópicos que podem esclarecer a melhor maneira de interagir com uma pessoa cega, porém não se trata de um manual de boas maneiras. cabe lembrar que cada situação é única e pode variar muito de pessoa pra pessoa.
♦ Ao se encontrar ou se despedir de uma pessoa cega, cumprimente-a estendendo- lhe a mão. Como ela pode não perceber seu gesto, fale a ela: “estenda sua mão” ou direcione seu cumprimento dando-lhe um leve toque nas mãos.
♦ Para iniciar um contato, toque, de leve, no braço da pessoa cega, fazendo-a entender que está direcionando sua fala a ela ou,ainda, chame-a pelo nome, se souber.
Se não a conhece, apresente-se, dizendo seu nome, e coloque-se à disposição. Caso volte a encontrar com a pessoa cega, repita seu nome e a faça lembrar de você. Geralmente a pessoa cega precisa ter mais de um contato para memorizar o timbre das diferentes vozes.
♦ Ao apresentar uma pessoa cega a alguém, faça-o de frente para a pessoa ou grupo a quem
você o está apresentando, a fim de evitar que ela estenda a mão para o lado contrário. Esse procedimento facilitará sua interação e relacionamento.
♦ Ao receber uma pessoa cega em seu local de trabalho ou em sua residência, acompanhe-a descrevendo e mostrando as principais dependências, a fim de que as conheça e aprenda detalhes em relação ao ambiente, para que possa se locomover sozinha, com independência e segurança. No entanto, ela pode precisar de sua ajuda outras vezes para se locomover até que se sinta segura e familiarizada com o espaço. deste modo, evite trocar móveis de lugar, deixar obstáculos no caminho, ou portas entreabertas.
Nunca se esqueça dos recursos que são peculiares à deficiência visual caso organize uma reunião, um evento, uma palestra ou mesmo quando estiver em contato com uma pessoa cega. Investigue ou pergunte qual recurso ela utiliza, pois nem todos os cegos sabem ler em Braille, por exemplo, ou conseguem ter boa desenvoltura no computador. Também há cegos que não se locomovem com bengala longa e preferem ser guiados por alguém e, outros ainda, utilizam cão-guia. Tendo essa informação, nunca deixe de providenciar e proporcionar acessibilidade a pessoa cega.
♦ Se estiver conversando com uma pessoa cega e precisar se afastar, comunique sobre sua ausência, pois ela poderá continuar falando sozinha. Faça o mesmo ao retornar.
♦ Fale diretamente com a pessoa cega, em tom natural, dirigindo-se sempre a ela durante a conversa quando for o caso, pois ela tem condições de ouvi-lo, compreender e responder a sua mensagem.
♦ Ao guiar uma pessoa cega, nunca a puxe ou a empurre pelo braço ou pela bengala. Ofereça seu braço para que ela segure e Fique meio passo à sua frente. Comece a caminhar tranquilamente, pois o movimento de seu corpo proporcionará orientação e segurança, dando-lhes pistas sobre o trajeto, como dobrar esquinas,descer ou subir degraus e desníveis pelo caminho. Várias pessoas cegas preferem ser guiadas de um lado específico, pergunte sempre.
♦ Quando estiver guiando uma pessoa cega, antecipe verbalmente os obstáculos como: poças de água, buracos, bueiros, postes, lixeiras, etc. Sempre em ambientes desconhecidos descreva também os detalhes antecipadamente, como desníveis, degraus, passagens estreitas e portas. Lembre-se de que o espaço à frente
deve ser suficiente para que duas pessoas passem. Se a passagem for estreita, coloque-se a frente da pessoa cega, flexionando para trás do corpo o braço que a pessoa cega está segurando, ela compreenderá o movimento.
♦ Seja claro e objetivo ao informar sobre obstáculos, direções (direita, esquerda, frente,
atrás), distâncias (longe, perto) e demais informações. As referências devem ser orientadas com objetividade, como há 5 passos, daqui 200 metros. Evitar apontamentos vagos como “ali”, “aqui”, “este”, “aquele”, etc..
♦ Auxilie a pessoa cega a atravessar a rua, a tomar uma condução, a subir e descer escada, a localizar um lugar, encontrar um objeto caído, ou outras situações similares. Caso for abaixar para apanhar algum objeto caído, avise-a antecipadamente, evitando que faça o mesmo movimento e batam a cabeça.
♦ Ao conduzir uma pessoa cega para sentar-se, direcione suas mãos por trás do encosto do assento (cadeira, banco, sofá…) e avise-a se o mesmo possui ou não braços, para que ele possa orientar-se quanto a direção, altura do acento, em relação ao espaço e às pessoas presentes.
♦ Ao conduzir uma pessoa cega para um automóvel, coloque-lhe a mão na lateral da porta do carro e, em seguida, no encosto do assento, para que ela se situe e se oriente ao entrar no veículo.
Ao descer ou subir escadas, conduzindo uma pessoa cega, deixe-a segurar em seu ombro e fique um degrau a frente. Estenda seu braço até o corrimão da escada, de modo que faça uma barreira a frente dela e comece a descida ou subida, de modo que ela também segure no corrimão, já que estará um degrau atrás.
Embora a falta de informação e o receio sejam os maiores obstáculos na conquista da autonomia da pessoa cega, tenha em mente que a dica principal é: “PERGUNTE SEMPRE”. A pessoa cega, dificilmente mostrará resistência em orientar sobre a melhor maneira de ajuda-la. Porém, caso a ajuda oferecida não seja aceita, não insista; isso é sinal de que a pessoa cega sente-se segura em realizar determinada tarefa sozinha e prefere assim fazê-la.
E ainda, não sinta-se constrangido se cometer alguma gafe, aja com naturalidade. Compartilhe suas experiências de interação estabelecida entre você e as pessoas cegas, assim criamos uma rede de informação para combater a desinformação sobre como lidar com as situações que surgem no dia-a-dia, quer seja no ambiente escolar, no trabalho, no comércio, nas ruas, quer seja em diferentes locais de livre acesso e circulação de pessoas e de múltiplas formas de enxergar, ultrapassando os limites, além daquilo que se pode ver.
* Luciane Molina é pedagoga e pessoa com deficiência visual. atua com formação de professores, alfabetização e reabilitação de pessoas com deficiência visual.