"Eu cá sei, eu cá sei! Fazem-se bebés quando o homem põe a pilinha no pipi da mulher e depois sai uma coisa e os bebés ficam feitos. É assim, não é?" As vozes sobrepõem-se na aula de educação sexual. Há guinchos e gargalhadas e batidas na me-sa. Os temas debatidos provocam excitação. "Eu vou casar com o vocalista dos Green Day. Vou comprar o vestido de noiva, casamos e depois vamos para a cama!"
A Cooperativa de S. Pedro, em Barcarena, é uma instituição que acolhe deficientes mentais e onde a sexualidade não é um tabu. Ou, pelo menos, há um esforço nesse sentido. As aulas de educação sexual são apenas um dos sinais de que o assunto não é silenciado. "Eu quero fazer sexo. E até já fiz montes de vezes com imensos homens!", exclama uma das alunas, provocando as gargalhadas dos outros. "Vá, calma, vamos lá quem é que sabe o que é uma relação sexual?", interrompe uma terapeuta, sorrindo com a exaltação que a temática provoca sempre.
Repressão ou provocação
Ivone Félix, diretora pedagógica da instituição, começou a trabalhar com deficientes mentais há 20 anos. De então até hoje reconhece que houve mudanças nas mentalidades mas admite também que há ainda um longo caminho a percorrer "Ainda há muito mal-estar, mesmo por parte dos técnicos que trabalham todos os dias com os deficientes. Às vezes vêm ter comigo muito perturbados: 'Ai fulano está ali a masturbar-se, que horror!' Mas que horror porquê?" A terapeuta insiste que é essencial ensiná-los a explorar o corpo em privado mas também sabe que nem todos têm a capacidade para aprender: "E nesses casos, a questão é simples: a quem é que aquilo está a incomodar? É a quem vê, não é? Então talvez o deficiente possa continuar o que está a fazer, e quem estiver incomodado que abandone a sala."
Ivone sabe que nem todos pensam como ela, mesmo na instituição que dirige. Porém, quer acreditar que já não ocorrerão ali situações como aquelas a que assistiu, há vários anos "Já vi de tudo. Desde funcionárias que batiam nos deficientes que estavam em práticas masturbatórias, às que lhes chamavam porcos, 'tira daí a mão, que grande porcaria', até à situação contrária, técnicas que os estimulavam com revistas pornográficas, para satisfazerem as suas tendências voyeuristas."
É que, se a sexualidade dos deficientes mentais é um problema para muitos técnicos, não será errado dizer que ela também se transforma, demasiadas vezes, numa verdadeira obsessão de todos os que lidam diariamente com os utentes internados. "Se há quem os considere assexuados, há quem pense o oposto, que eles só pensam nisso, de uma forma quase animalesca. As duas opiniões estão erradas porque, no que diz respeito à sexualidade, eles são exactamente como todas as outras pessoas", esclarece a psicóloga Ana Allen Gomes.
Holanda é exemplo a seguir
Quem está à frente de uma instituição onde residem deficientes mentais deve, pelo menos em teoria, estar preparado para tudo. Ivone Félix, que recentemente visitou instituições similares na Holanda, constata que a realidade portuguesa está ainda a anos-luz "Na Holanda, há técnicos que ensinam os utentes a masturbar-se e até há técnicos que masturbam os deficientes profundos, incapazes de o fazer sozinhos. No nosso país não há profissionais que o façam. Haverá alguns, mas escondidos no segredo dos deuses." A razão para tanto secretismo prende-se sobretudo com aquilo que os outros possam pensar: "Um técnico que tenha o à-vontade para o fazer tem sempre medo dos julgamentos dos colegas ou de quem possa vir a saber." Mas os receios não se esgotam aí: "Alguns técnicos perguntam-me: e depois se eles se habituam? Todas estas questões também têm muito que ver com a nossa educação judaico-cristã", comenta a terapeuta. "Mas incentiva os seus profis- sionais a fazerem-no?", queremos saber. Ivone Félix prossegue, num pragmatismo desarmante: "Eu incentivo a que as pessoas estejam disponíveis para. Mas, como é evidente, não posso - nem quero - violentar ninguém."
Casais bem aceites
Além das aulas de educação sexual, a Cooperativa de S. Pedro, em Barcarena, procura estabelecer um contacto com os pais, alertando-os para situações que eles raramente têm iniciativa de abordar "Às vezes temos de chamar a atenção dos pais para os namoros dos filhos. Há alguns que rejeitam liminarmente essa hipótese. E aí, por muito que nos custe, temos de os vigiar para que na-da aconteça." Depois há os outros, mais compreensivos, que admitem um relacionamento afectivo-sexual dos filhos: "E nesses casos, desde que a contracepção esteja assegurada, não somos nós aqui na instituição que os vamos impedir de serem felizes, não é?"
Luísa e Carlos sabem-no bem. Vivem ambos na Cooperativa de S. Pedro e têm permissão para dormir no mesmo quarto. Aí, na sua intimidade, fazem o que bem entendem e ninguém tem nada com isso. Os pais foram os primeiros a concordar e a direcção fez o resto. No que diz respeito à contracepção, Ivone Félix defende que se pense cada caso individualmente "Quando os pais não admitem a sexualidade dos filhos, não lhes podemos dar contracepção e temos de os vigiar de perto. Nas situações em que os pais deixam, ou quando somos nós os únicos responsáveis por eles (nos casos em que não têm família), geralmente opta-se pelo implante ou pelo método injectável." Este último tem, de resto, uma outra utilidade. Como provoca amenorreia (ausência de período menstrual), tem a vantagem acrescida da higiene, que muitas vezes é um problema para os cuidadores.
Vulnerabilidade ao abuso
Um dos dramas sempre presentes quando se fala em cidadãos com deficiência mental é o risco de abuso sexual. Estas são pessoas mais vulneráveis, muitas vezes incapazes de compreender a fronteira entre uma manifestação de carinho e um abuso. Na Cooperativa de S. Pedro já houve um caso destes. Foi há 17 anos. Uma deficiente mental apareceu grávida e o responsável terá sido o motorista da instituição "Ele foi imediatamente despedido mas negou sempre as acusações. O caso foi a tribunal mas parece que nada chegou a ser esclarecido. A criança acabou por nascer sem qualquer deficiência e ficou ao cuidado dos avós."
Histórias como estas são, infelizmente, mais comuns do que se imagina. Ana Allen Gomes insiste "É preciso defender estas pessoas da maldade dos outros."
Fonte: Diário de Notícias
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