*Por Luciane Molina
Meus leitores já devem ter percebido que, mesmo tendo deficiência visual, sou bastante ligada à imagens. Seja de uma forma ou de outra, elas fazem parte da vida de qualquer pessoa: nas cores das roupas, por exemplo, ou numa fotografia que se queira mostrar para os amigos. Até mesmo nas redes sociais, as publicações que contém imagens apresentam um índice de visualização infinitamente superior Às que são apenas texto. É claro que, tais postagens, seriam muito mais atrativas se contemplassem imagem e descrição, mas isso fica pra um outro post.
Nessas últimas semanas, por causa dos contatos que tenho tido com muitos profissionais da educação, um assunto tem sido alvo de recorrente questionamento. Posso ensinar cor para uma pessoa cega? Pois bem, sobre isso venho esclarecer alguns pontos, tendo em vista a minha própria experiência enquanto pessoa com deficiência visual e pedagoga que atua nessa área.
O primeiro ponto que merece destaque, é que as cores têm um simbolismo próprio, isto é, para cada pessoa ela poderá representar um sentimento, uma emoção, um objeto, um momento vivido, etc. Quem nunca ouviu falar que determinado tom de verde lembra um verde folha? E que o azul é celeste? E que um vermelho é vermelho sangue e outro, vermelho tomate? Conhecemos até mesmo as cores que fazem menção à bebidas e frutas, como é o caso da cor vinho e a cor de abóbora e que fazem parte do repertório de qualquer pessoa.
Para quem não enxerga não é diferente. As cores vão ganhar significados reais através de associações táteis, olfativas e até gustativas, em alguns casos. O que diferencia, então é o fato das abstrações deixarem de ser visuais e passarem a usar o próprio repertório já construído pela pessoa cega, por meio das texturas, dos aromas e dos gostos que já conhecem.
O aroma do morango, por exemplo, pode ser associado ao vermelho. A textura macia do algodão, ao branco. o sabor e a consistência de uma folha de alface, ao verde. E assim por diante… Porém, se a pessoa não gostar do morango e esse aroma não fizer parte do dia-a-dia dela, essa associação não atingirá seu objetivo, que é criar uma representação imagética que facilite a identificação e a interpretação das cores, isoladas ou combinadas com outras. Esse reconhecimento é individual e depende das experiências vividas por cada pessoa. assim, um vermelho concebido visualmente por quem enxerga, jamais será o mesmo vermelho de quem associá-lo através do aroma ou do gosto de um morango.
A associação precisa acontecer a partir de objetos, aromas e gostos que lhe são familiares e que lhes provoquem alguma sensação ou lembrança. Muitos sabem que os cheiros são capazes de nos transportar para situações e momentos diversos vivenciados por nós e, por isso, essa talvez seja a melhor de todas as experiências comparativas. As associações também precisam ser agradáveis ao tato, ao olfato e ao paladar para que não haja a rejeição imediata e a cor passe a ser “feia” na concepção de quem a vê pelos sentidos remanescentes. Associações dessa natureza interferem negativamente na construção autônoma e independente dos conceitos de imagens pela pessoa cega. Cuidado especial deve ser tomado para associar cores quentes e frias, pois essas experiências nem sempre são agradáveis ao tato e não conservam significação imagética quando usadas para cores isoladamente, já que o quente/frio poderá representar infinitos significados e as associações precisam ser o mais específicas possível.
Para explicar, de maneira simplificada, como funciona uma associação imagética, pense no seguinte: as estrelas que aparecem no céu pela noite não se assemelham em nada com as estrelas que desenhamos para representá-las, com 5 ou 6 pontas triangulares. Esses desenhos, então, são simbólicos, mas, onde quer que estejam estampados, identificamos que são uma estrela. É assim também com as demais associações que, mesmo abstratas fisicamente, ou seja, invisíveis ao olhar, representam algo que pode transportar uma imagem/simbolismo à memória. Ou seja, transformam texturas, aromas e sabores em algo palpável, criando imagens mentais de algo já conhecido e ativadas pelos sentidos das pessoas que não dispõem da visão como canal predominante de acesso às informações.
Por último, nunca deixe de explicar e nomear cores para uma pessoa com deficiência visual, elas gostam de participar do mundo “real” das imagens. Descreva as cores, associando-as com algo que esteja ao alcance ou que seja familiar da pessoa cega. Fale sobre imagens, tons, combinação das cores e roupas. Afinal isso também é inclusão!
Luciane Molina é pedagoga e pessoa com deficiência visual.
Atua há mais de 12 anos com educação inclusiva. Mantém o blog www.braillu.com.