‘As próprias pessoas com deficiência têm vergonha de perguntar’
O caso da Miss Bumbum, Dai Macedo, 26 anos, que namora há oito meses o cadeirante e advogado Rafael Magalhães, 31, trouxa à tona um assunto ainda tabu: uma pessoa com deficiência tem a vida sexual ‘normal’? O assunto gerou polêmica e internautas encheram as páginas dos sites de comentários a favor e contra o relacionamento. O Tempo de Mulher conversou com cinco cadeirantes que falam abertamente sobre sexualidade e o preconceito que enfrentam.
A gaúcha Carol Constantino, cadeirante desde pequena por causa da atrofia muscular – um problema que impede o fortalecimento dos músculos responsáveis para caminhar – explica que o maior tabu dos cadeirantes ainda é a sexualidade. Ela conta que muitos amigos que também possuem deficiência, depois de um tempo, passam a enxergar a sexualidade de uma maneira um pouco diferente. ‘Nós, cadeirantes, valorizamos a compreensão, carinho, as palavras, a química. Coisas que para muitas pessoas nem existem na hora do sexo, mesmo estas não sendo cadeirante’, opina Carol.
Ela relata ainda que a deficiência física não atrapalha a vida sexual. ‘Muitos têm uma visão errada da gente, como se fossemos doentes, indesejáveis e nada atraentes. Tudo isso também leva a crer que as pessoas com deficiência são incapazes de terem sentimentos como amor e atração, essenciais para um envolvimento a dois’, conta Carol, criadora do blog Cantinho dos Cadeirantes.
Já Márcia Gori, cadeirante formada em Direito e palestrante de sexualidade e inclusão da PCD (pessoa com deficência), não acredita que existam barreiras para homens e mulheres cadeirantes viverem o prazer sexual. No entanto, ela afirma que há empecilhos que as próprias pessoas ao redor criam, ora por falta de conhecimento, ora por maldade mesmo. ‘Ou por julgarem que não temos direitos reais em vivenciar nosso prazer e sexualidade’, conta Márcia.
A cadeirante Juliana Carvalho dos Santos, que se tornou paraplégica depois de uma inflamação da medula aos 19 anos, explica que, no imaginário coletivo, os cadeirantes são assexuados ou impotentes. E isso é uma crença que não condiz com a realidade. ‘Há também o mito de que não é possível ser feliz tendo uma deficiência e, claro, o de que somos assexuados’, opina ela, que hoje vive na Nova Zelândia e é autora do livro autobiográfico ‘Na minha cadeira ou na tua?’ (Ed. Terceiro Nome).
As pessoas acharem que não existe vida sexual para quem tem deficiência é um dos mitos mais complicados relacionados à vida sexual dos deficientes na opinião do jornalista Jairo Marques, 35 anos. Ele usa cadeira de rodas desde os seis anos de idade devido a uma poliomielite. Hoje, é repórter de Cotidiano e é autor do blog ‘Assim Como Você’, ambos na Folha de S. Paulo.
Para a psicóloga do departamento de psicologia da Universidade Estadual Paulista de Bauru, em São Paulo, Ana Cláudia Bortolozzi Maia, a sexualidade é um tabu para qualquer pessoa. ‘O mito que mais prevalece é o da assexualidade e as próprias pessoas com deficiência incorporam esse mito. Fato que ocorre, principalmente, quando a deficiência é adquirida. O que talvez possa ser justificado pela dificuldade de dar início a uma vida nova, depois da deficiência, com o padrão que tinha antes’, explica a psicóloga.
A gaúcha Carol Constantino criou o blog ‘Cantinhos Cadeirantes’ para ter um espaço onde pudesse discutir assuntos relacionados a este universo. Ela afirma que a sexualidade é o tema mais procurado pelos leitores com deficiência. E destaca o interesse dos andantes também pelo assunto, pois eles possuem muita curiosidade sobre isso.
Ela conta ainda que as regras na hora de se relacionar sexualmente com alguém são as mesmas para todo mundo, cadeirante ou não.
‘Funciona basicamente igual às pessoas sem deficiência. A diferença é que não conseguimos fazer todas as posições da Kama Sutra, por exemplo. Não encarem a sexualidade com um cadeirante como uma coisa diferente. Brinque, divirta-se com seu parceiro. Afinal, entre quatro paredes vale tudo. É claro que não podemos igualar com a de um andante, mas, quando o preconceito é posto de lado, sempre será possível criar maneiras para o casal desfrutar de uma relação sexual satisfatória e prazerosa’, diz a blogueira.
‘Na hora da paquera, é fundamental que o cadeirante esqueça que está em uma cadeira de rodas’
A questão da vaidade é algo que, segundo Carol, muitos cadeirantes levam a sério. ‘Em minha opinião, nós já temos a desvantagem de não poder exibir a forma física na hora da sedução. Por isso, as mulheres cadeirantes apostam nos cabelos, numa boa maquiagem e perfumes. Já os homens cadeirantes capricham na força física dos braços, usam boné e óculos de sol bacana, além de roupas modernas’, explica a blogueira.
Carol ressalta que na paquera, além da vaidade, é fundamental que o cadeirante esqueça que está em uma cadeira de rodas. Dessa forma ele vai passar mais segurança para a outra pessoa, pois a cadeira de rodas é apenas um acessório e não a pessoa’.
‘Depois que a paquera está ganha, é natural as curiosidades começarem a surgirem. Aí que entra o diálogo. Não há problema algum em fazer perguntas quando se está realmente interessado. Tanto homens quanto mulheres podem perguntar ao cadeirante sobre sexo. Nós não nos importamos quando isso acontece, e gostamos porque significa que a pessoa está interessada’, diz.
‘Cadeirante deve ter amor próprio em primeiro lugar’
A cadeirante Márcia Gori, e palestrante de sexualidade e Inclusão da PcD (Pessoa com Deficência), não acredita que existam barreiras para homens e mulheres cadeirantes viverem o prazer sexual. No entanto, ela afirma que há empecilhos que as próprias pessoas ao redor criam, ora por falta de conhecimento, ora por maldade mesmo.
Ela explica também que os aspectos que mais leva em consideração na vida sexual são a boa saúde física, emocional, autoestima, além de conhecer o próprio corpo, deixando-o se expressar. Para Márcia, o cadeirante deve ter amor próprio em primeiro lugar. Com isso, poderá conservar sempre a autoestima e nunca autorizar nenhum tipo de violência se instalar em sua vida.
‘Estudar, ler, aprender muito sobre tudo, conversar bastante com o parceiro ou parceira. O diálogo ajuda muito na compreensão das relações e sentimentos do casal porque instala-se a confiança e o desejo de estar junto e se conhecer mais profundamente’, diz Márcia.
‘O processo de redescoberta da sexualidade foi complicado’
A gaúcha Juliana Carvalho dos Santos, que se tornou paraplégica após uma inflamação da medula aos 19 anos, explica que, no imaginário coletivo, os cadeirantes são assexuados ou impotentes. E essa é uma crença que não condiz com a realidade. Juliana, que hoje vive na Nova Zelândia, contou sua história no livro autobiográfico ‘Na minha cadeira ou na tua?’ (Ed. Terceiro Nome).
‘Na minha opinião, os principais mitos são a falta de capacidade para o trabalho, a associação com a ineficiência, como se a pessoa com deficiência fosse um fardo para a família e a sociedade. Há também o mito de que não é possível ser feliz tendo uma deficiência e, claro, o mito de que somos assexuados’, opina.
‘O lance é redescobrir novas formas de sentir prazer’
A deficiência, no entanto, não atrapalhou a vida sexual de Juliana. No seu caso, como ela já havia tido relações sexuais antes de se tornar cadeirante, o processo de redescoberta da sexualidade foi longo e complicado.
‘As referências que eu tinha de prazer já não serviam para o meu novo corpo. Acredito que depende muito de cada pessoa para ter uma vida sexual plena. Claro que, dependendo de cada tipo de limitação física, certas posições não vão acontecer. De pezinho não rola, por exemplo. Mas a criatividade esta aí para buscar novas posições e mesmo usar a cadeira de rodas como um acessório na hora do sexo’, diz Juliana.
Como o apetite sexual não diminui só porque você não controla mais suas pernas, Juliana precisou redescobrir o seu corpo. ‘Depois da lesão muda muita coisa. Pode haver perda de sensibilidade, de mobilidade, mas o tesão segue o mesmo. E o orgasmo é uma função cerebral que independe de tato ou ‘rebolation’. O lance é redescobrir novas formas de sentir prazer, readequar-se a essa nova realidade e curtir tudo com espelho no teto’, conta.
‘A segurança no sexo vem de uma conversa bacana’
O jornalista Jairo Marques, 35 anos, usa cadeira de rodas desde os seis por conta de uma poliomielite, por fatores diversos. No caso dele, ligou-se o não andar, o não ver e o não ouvir, com o ‘não transar’.
‘Há muitos fatores que levam as pessoas a pensarem, por exemplo, que a não ‘sensibilidade’ de lesados medulares afeta sua virilidade, inclusive fatores familiares. E isso, normalmente, ocorre porque existe a ânsia de querer proteger o ente querido do mundo, e com isso oculta-se um debate de vida sexual. O preconceito faz com que pessoas com deficiência, sobretudo as mais severas, passem a vida toda sem sexo’, opina.
Sobre a frase ‘É preciso cuidado na hora do sexo com um (a) cadeirante’, o jornalista explica: ‘É uma frase um tanto broxante, não? Quando a pessoa tiver uma mega sensibilidade óssea, provavelmente ela mesma irá se precaver e avisar. Já vivi essa situação do ‘medo’ dezenas de vezes. A parceira temia quebrar minhas perninhas. Penso que essa segurança vem de uma conversa bacana, de brincar na intimidade’, conta Jairo.
‘Sexo se constrói com inteligência’
‘É preciso tirar da cabeça que sexo é uma arte só de corpinhos lindos e que se faz juntando o ‘pipi com a mimi’. Sexo é muito mais do que isso e um bom sexo se constrói com inteligência, sedução, vontade e criatividade. É preciso informação! Conheço relatos de orgasmos incríveis sem que houvesse necessidade de muito rebolado. O que atrai gente bacana, gostosa e inteligente não tem relação só com o físico. E isso precisa ser compreendido mais amplamente’, opina Jairo Marques.
‘O único preconceito que senti foi o que eu mesma criei’
Paula Ferrari trabalhava num centro para reabilitação de deficientes físicos quando, em 2012, teve que passar por uma cirurgia para a retirada de seis miomas. Devido a uma complicação resultante de uma anestesia, ela teve uma infecção medular que resultou em uma dificuldade importante na coordenação e força das pernas.
Mesmo conseguindo trocar passos dentro de casa, Paula é cadeirante na maior parte do tempo. A foto que ilustra a matéria fez parte de uma campanha para marcas de roupas onde ela, que também é modelo, participou. A sessão de fotos foi conduzida pela fotógrafa Kica Castro, dona de uma agência de modelos para pessoas com deficiência.
Paula conta que as pessoas se aproximam dela mais pela curiosidade e não tanto pelo preconceito. ‘O único preconceito que senti foi o que eu mesma criei. Sempre que saía com as amigas pensava ‘poxa, vou atrapalhar’. O que eu percebo não é preconceito, mas uma situação de curiosidade, do outro querer se aproximar para saber um pouco’, conta.
‘Hoje há motéis que são acessíveis’
Paula explica que, historicamente, a pessoa com deficiência é vista como portadora de uma doença e, por isso, doente não faz sexo. ‘Acontece, às vezes, da pessoa estar na cadeira de rodas e o outro pensar ‘ah, ela está doente’. E a conclusão deles é que o doente não precisa de sexo, precisa de cura. As pessoas acham que a nossa vida gira em torno do voltar a andar, da cura do problema e esquece que nos adaptamos’, ressalta.
A questão da acessibilidade é ainda um problema que até mesmo atrapalha a vida sexual. ‘Antigamente o deficiente não mostrava muito a cara. As pessoas ficavam muito presas em casa, além da falta de acessibilidade que contribuía. Isto ainda é um problema, pois nem todos os lugares estão preparados para receber cadeirantes. Mas, hoje, há motéis que são acessíveis, que não têm escada, mas rampas, e que tem um banheiro com porta maior. Isso tem facilitado e contribuído para que possamos ter uma vida sexual’, diz Paula.
Mito da assexualidade
Ana Cláudia Bortolozzi Maia, psicóloga do departamento de psicologia da Universidade Estadual Paulista de Bauru, em São Paulo, a sexualidade é um tabu para qualquer pessoa.Ela também é autora da obra ‘Sexualidade e Deficiências’ (Editora Unesp).
Segundo a especialista, o mito que mais prevalece nesse universo dos cadeirantes é o da assexualidade. E, muitas vezes, as próprias pessoas com deficiência incorporam esse mito. Fato que ocorre, principalmente, quando a deficiência é adquirida. O que talvez possa ser justificado pela dificuldade de dar início a uma vida nova, com o padrão que tinha antes’, explica a psicóloga.
‘Então, a própria pessoa já vai incorporando coisas como ‘acabou minha vida’, ‘eu não posso fazer nada’. Isso para trabalho, para tudo, inclusive na questão da sexualidade. Existe sempre uma diferença de gênero. Para as mulheres, o que emperra é a reprodução, se vai engravidar ou não. Diferente dos homens, que se preocupam se vão ter ereção’, explica a psicóloga.
‘As próprias pessoas com deficiência têm vergonha de perguntar’
‘Quando as pessoas falam que não tiveram orientação é porque existe uma invisibilidade nessa questão. Os médicos também não têm formação e as próprias pessoas com deficiência têm vergonha de perguntar. Algumas instituições de reabilitação têm trabalhos de educação sexual, mas o recado é assim: ‘olha fulana, você mesma, cadeirante, você pode engravidar’, o que reproduz muito o modelo biológico e preventivo que vemos ainda hoje na educação sexual’, ressalta Ana Cláudia.
Fonte: Tempo de Mulher