A bancária Nanci Medina, de 44 anos, sofre de artrose bilateral no quadril há dez anos, tem habilitação para dirigir há 20, mas só no ano passado soube que poderia comprar um carro novo com a isenção de impostos prevista em lei para pessoas com deficiência física, visual, mental severa ou profunda e autistas.Tomou a decisão. Em um mês, passou por uma perícia médica credenciada pelo Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) e teve alterada a categoria de sua habilitação. Percorreu um longo percurso, entre junho e janeiro, até obter as cartas de isenções. Mas foi a partir desta etapa que as coisas ficaram mais difíceis. Uma jornada exaustiva por 20 concessionárias para encontrar o atendimento especializado necessário. Sem essa atenção fica praticamente impossível para o deficiente fazer valer esse direito.
Nanci deparou com preconceito, tratamento inadequado e restrito a dias de semana. Enfim, um grande estímulo à desistência. Ela já ia partir para a compra tradicional quando, em fevereiro, encontrou numa revenda a atenção que queria, e fez a encomenda. Além da isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), negociou mais 5% de desconto com a montadora. Dezoito dias depois, já tinha na garagem um carro de motor 1.8, cujo preço original de R$ 69 mil foi reduzido a R$ 45 mil. Não é o carro com o qual ela sonhou. Estava mesmo à procura de um Renault Fluence, mas não teve sucesso nessa busca. Agora, se quiser um novo modelo subsidiado terá de esperar a compra completar dois anos. Os benefícios estão previstos na Instrução Normativa SRF 988, de 2009.
O Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) publicou no Diário Oficial da União alterações relativas à concessão de isenção do ICMS a partir de 2013. O benefício, que deve ser renovado a cada três anos, terá prazo reduzido para dois, assim como já é praticado com a isenção do IPI. Também estende o benefício para os casos em que o deficiente não é o condutor. O valor máximo do veículo a ser adquirido é R$ 70 mil (valor cheio sem cálculo dos descontos). Poderão ser adquiridos com isenção de IPI veículos fabricados nos países do Mercosul (Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina) com 65% de nacionalização dos itens.
Sozinho é difícil, mas é possível
Todo deficiente deve buscar seus direitos diretamente na Receita Federal e na secretaria da Fazenda de seu estado. Mas, por causa das limitações físicas, o auxílio de uma empresa intermediária costuma facilitar o processo. Foi assim com Nanci. Ela recorreu à Névia Isenções. A dona da empresa, Névia Bernardes da Gama e Silva, afirma possuir 70% desse mercado em São Paulo. Sediada na Vila Mariana, zona sul da capital paulista, atende a 200 pedidos por mês, e apenas em 20% dos casos o deficiente não é o condutor do veículo.
Névia, cuja empresa vivencia um crescimento de 15% ao ano, explica o caminho das pedras para quem tem condições de fazer o percurso sozinho (quadro abaixo): para obter as isenções, o requerente vai ter de esperar em média seis meses. Ela faz uma observação importante: “Não basta comprovar a deficiência para obter o benefício, a pessoa deve estar quite com a Receita Federal e com a Fazenda de seu estado e tem de comprovar a capacidade de pagar o veículo e as despesas com sua manutenção”. Segundo Névia, depois de obter a habilitação adequada, de acordo com a deficiência (quadro abaixo), e o laudo médico, começa o processo de pedido de isenções.
Passo a passo do processo de isenção: prazo médio é de seis meses. Com despachante, o gasto é de R$ 600
- O pedido de isenção de IPI deve ser feito em formulário de requerimento junto à Receita Federal com documentação específica para cada caso. Em média, a liberação demora cinco meses. Isenção varia de 9% a 13%;
- O deficiente condutor também pode requerer isenção de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), caso vá apelar a financiamento. A isenção varia de acordo com o valor financiado;
- De posse da carta de isenção do IPI e de IOF, se for o caso, a pessoa escolhe o carro para poder requerer a isenção de ICMS na secretaria da Fazenda de seu estado: é preciso saber o valor e a forma de pagamento do bem. A liberação demora em média 10 dias. Isenção de 12%;
- Com a carta de isenção do ICMS, o cliente encomenda do veículo. A entrega demora entre 15 dias e três meses, dependendo do modelo e da capacidade de atendimento da montadora;
- Para obter isenção do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), o pedido deve ser feito à Fazenda estadual no prazo máximo de 25 dias a contar da emissão da nota fiscal. O tempo de resposta varia, porém, não é preciso pagar o imposto;
- Por fim, o deficiente pode pedir a liberação do rodízio (na cidade onde existe; o link traz as orientações para São Paulo) à Secretaria Municipal de Transportes. A resposta sai entre 15 e 20 dias; é preciso entregar o laudo pericial;
- Uma nova compra só poderá ser feita em dois anos
- O automóvel não sai adaptado de fábrica; é preciso mandá-lo para os ajustes em empresas prestadoras desse serviço
Fonte: Névia Isenções
A atriz paulistana Tábata Contri, de 31 anos, sofreu lesão medular definitiva e ficou paraplégica da cintura para baixo em consequência de um acidente de automóvel no réveillon de 2001, na rodovia Governador Carvalho Pinto, quando ia para a praia de Trindade, em Paraty, no Rio de Janeiro. Ela estava no banco de trás e não usava cinto de segurança. Aos 19 anos, havia acabado de tirar a carteira de motorista.
Esteve hospitalizada em Caçapava (SP) por quatro meses, mas só depois de passar dois meses pela Rede Sarah Kubitschek de Hospitais de Reabilitação, em Brasília, ganhou autonomia e aprendeu a se vestir, se transferir para os lugares, a praticar canoagem, basquete, a se socializar com pessoas que enfrentaram o mesmo processo, a se alongar, a colocar sonda urinária, a ter cuidados com a pele e o cabelo. Ficou internada sozinha porque fazia parte da reabilitação. Foi voltando à vida aos poucos. Em 2003, começou a fazer teatro e em 2004 deu seu grito de liberdade, quando comprou seu primeiro automóvel. "Ganhei o direito de ir e vir", diz. Para buscar as isenções contou com a ajuda dos amigos para levá-la aos lugares. "É possível requerer as isenções por conta própria, mas é preciso muito tempo e disposição. Foram cinco meses de espera."
Para a compra do segundo veículo, Tábata recorreu a um despachante. Começou o processo em maio de 2011 e pegou seu carro em janeiro. "Demora muito, mas quem tem deficiência tem de ter paciência. E se eu tivesse condições financeiras não ia atrás de isenções. O processo é moroso porque tem muito esperto se aproveitando do benefício fiscal", diz. Para Tábata, seria preferível morar em uma cidade com acessibilidade. "Aí eu não precisava de carro."
Luciane Santana Habib, diretora da Auto Escola Javarotti, com oito unidades na região metropolitana de São Paulo, especializada no atendimento a deficientes, recebe em média mil clientes por mês. Ela ressalta que, bem adaptado, o automóvel pode ser conduzido até por tetraplégicos, mas conta que, em geral, a transmissão automática resolve a maioria dos casos de adaptações. Luciane diz que os deficientes precisam de assessoria para buscar os benefícios fiscais. Para a hora da compra do veículo, ela sugere: "As montadoras devem investir em pessoal para fazer esse atendimento especializado porque é um público crescente. Mas é difícil, porque a venda é mais demorada".
Venda direta
No final de fevereiro, a reportagem procurou a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) para falar sobre a norma que prevê a venda com isenções e para saber se há um gargalo no atendimento a deficientes nas revendas. A orientação recebida foi buscar as informações isoladamente com cada montadora. Foram procuradas cinco montadoras, por meio das assessorias de imprensa (General Motors, Ford, Volkswagen, Fiat e Toyota). Não houve respostas.
O diretor de vendas diretas da concessionária Grand Brasil, com 13 lojas na Grande São Paulo, Roberto Bottura, ao saber da dificuldade da bancária Nanci, admite que se o vendedor não é especializado a venda não é possível. Diz que é preciso conhecer com profundidade as regras tributárias e afirma: "Existe uma grave carência desses profissionais no mercado." Diferentemente do que aparenta, a venda para deficiente é rentável. "É a melhor área de vendas diretas da montadora", conta. Mas o vendedor demora para receber a comissão, e isso pode desestimular. "Alguns são imediatistas ou mal treinados mesmo", lamenta.
Para Bottura, a responsabilidade deve ser compartilhada entre a concessionária e a montadora. Ele avalia que a empresa mais madura vê essa venda como um grande mercado. "Todo mês aumenta a procura e eu espero que ainda neste mês tenhamos atendimento em tempo integral para os deficientes. Vamos treinar mais gente, porque é muito difícil encontrar pessoas capacitadas", diz. Segundo o diretor, em cada loja de sua empresa já há pelo menos um profissional desse tipo.
"Esse mercado é muito mais potente do que se imagina. As montadoras estão amadurecidas e incentivam a venda porque as coisas mudaram. Entre dez e 15 anos atrás, a lei de concessão de benefícios fiscais para os deficientes ia e vinha, mas a partir de 2009 virou direito do cidadão", diz. Na Grand Brasil há aproximadamente 300 processos em tramitação. "Este é um mercado complicado e trabalhoso. Só quando é visto business a coisa anda", avalia Bottura.