Resumo
A proposta deste artigo é desencadear uma reflexão crítica acerca da sexualidade da pessoa cega na interface com o erotismo veiculado pela mídia - essa que privilegia quase que exclusivamente a visão. Inúmeras são as influências da mídia. Todavia, a emoção não é propriedade apenas do olhar. A dança dos afetos acontece no ritmo dos compassos dos demais sentidos e como tal ressoa pelo corpo todo. O universo erótico da pessoa cega é mobilizado pelos sons, sussurros, timbres de voz, toques nos cabelos e na pele, e os cheiros que ocupam lugar especial na trilha da sua intimidade.
Abstract
The blind: Erotism and the Media
The present article aims to trigger critical reflection upon the sexuality of the blind in the interface with the image of the erotic as created by the media - one that privileges quite exclusively the sight. Emotions, however, is not particular to the sight. Affection dances to the rhythm and beats of our other senses and thus resonates through our whole body. The erotic universe of the blind is mobilized by the sounds, the whispers, the pitch of voice, the touch of hair and skin, and the smells, which play a special note in the soundtrack of their intimacy.
A proposta deste artigo é desencadear uma reflexão crítica acerca da sexualidade da pessoa cega na interface com o erotismo veiculado pela mídia - essa que privilegia quase que exclusivamente a visão.
Trata-se, portanto de um tema instigante e provocativo. Para realizar tal intento, revisito, entre outros autores, Bruns e Leal Filho (1996) em seu artigo Sexualidade, deficiência visual e os meios de comunicação, pela atualidade do tema nele desenvolvido.
Partimos da premissa que o consumo e a indústria cultural, juntamente com o desenvolvimento da mídia e por intermédio das diversas formas de publicidade e propaganda, vêm fazendo uso, principalmente, de recursos visuais, de mensagens subliminares e de estratégias de marketing para demarcar a desconstrução de antigos e a construção de novos valores morais, étnicos e estéticos que se materializam em práticas sociais flexíveis e plásticas, cuja efemeridade às vezes provoca perplexidade até nos mais jovens, que, sem entenderem o porquê e o como, são lançados a mil e uma armadilhas travestidas de slogans "libertários" que os faz presas fáceis do consumismo desenfreado que ora vivenciamos.
Vale dizer que grande parte da produção artística atual, da TV, do cinema, do rádio, da literatura e da música, e até mesmo dos outdoors reproduz essa imagem - uma forma de erotismo "descartável". Em outras palavras, um tipo de "consumismo sexual" que se caracteriza pela impessoalidade e rapidez, tal como as belas embalagens que servem apenas para produzir fetiches, talismãs de prazeres visuais, com o objetivo certeiro de seduzir o consumidor.
Nesse sentido, parece que estamos sendo treinados para despertarmos o desejo do outro e não o nosso próprio desejo pelo outro. Os manuais de orientação sexual expõem um rol de dicas a serem seguidas por mulheres para facilitar-lhes a conquista do "homem ideal". Diga-se de passagem, o homem ideal nesse contexto significa aquele dos seus sonhos, aquele que, além de belo, forte, gostoso, alto, elegante, inteligente e sensual é erótico. Todas essas "qualidades", no entanto, precisam estar representadas por uma bela embalagem - tipo o carro do ano.
Nos dizeres de Maria Rita Kehl (2004, p.67) "A mídia produz os sujeitos de que o mercado necessita, prontos para responder a seus apelos de consumo sem nenhum conflito, pois o consumo - e, antecipando-se a ele, os efeitos fetichistas das mercadorias - é que estrutura subjetivamente o modo de estar no mundo dos sujeitos".
Nesse sentido, "o carro do ano" constitui-se no fetiche que desperta e consolida o desejo pelo "homem ideal", é a embalagem que seduz e responde aos apelos de consumo, ao mesmo tempo em que induz a mulher a realizar escolhas que ela acredita ser individual e autêntica. Nesse percurso, se o fetiche não mobilizar-lhe esse tal desejo "pelo homem ideal" é só descartá-lo e partir em busca de outra mercadoria, outro fetiche, outro homem mais atraente. A velocidade da mídia exige a velocidade do olhar... Assim como expressa a música de Paula Toler: "Eu tenho pressa / Tanta coisa me interessa / mas nada tanto assim".
Comportamento semelhante pode ser observado nos homens, que, educados pela erotização das imagens de revistas especializadas para o público masculino, que priorizam o "olhar somente naquelas partes" consideradas pelos editores/leitores de tais revistas como eróticas/pornográficas, não só desconhecem a trajetória tão sonhada e almejada do erotismo feminino que transita pelas sutilezas do toque, do odor e das carícias prolongadas, como pela decepção ao constar que - aquelas tais partes das mulheres reais não correspondem às belas imagens das revistas.
Com essa bagagem, homens e mulheres partem ao encontro do(a) parceiro(a) ideal para realizarem seus sonhos, fantasias e expectativas. E não raro vivenciam dolorosas decepções.
Estudo de Bruns (2008, p.52) acerca da educação sexual propiciada por mães de filhos portadores de deficiência visual revelou que a dificuldade das mães abordarem assuntos relacionados ao sexo não ocorre somente com o (a) filho(a) com deficiência visual, mas também com os dotados de visão.
A desinformação acerca dos aspectos sexuais, legada pela moral repressora, encarrega-se de consolidar as dificuldades de visualizarmos Eros como nosso aliado no cotidiano. Isso significa dizer que a história da repressão da sexualidade caminha em parceria com o processo histórico, ideológico, político e cultural de cada sociedade, que a seu modo, estabelece os limites entre o lícito e o ilícito; o proibido e o permitido; o público e o privado.
Estigmas e preconceitos em relação ao modo como nos relacionamos com a deficiência são também construídos historicamente por cada sociedade. Ressalvadas as exceções, os deficientes são "educados" para se sentirem desinteressantes sexualmente. Afinal, a pessoa cega não reflete o modelo "daquelas embalagens" veiculado pela mídia, ou seja, ela não corresponde aos padrões socialmente estabelecidos de beleza, sedução, virilidade e feminilidade: enfim, padrões do erotismo descartável.
Todavia, não se pode imaginar que a pessoa cega se encontre a margem dessa corrente de influências exercidas pela mídia. O deficiente habita as redes de relações familiares e de significações sociais já construídas e nas quais alicerçará sua estrutura psíquica. Como nos dizeres de Castro; Waideman (2005, p. 46) "A família não é só um meio de manutenção da vida e proteção para o indivíduo e sim também um dispositivo que transmite padrões psíquicos - fantasias, afetos, desejos, objetos recalcados, ideais, mecanismos de defesa que são transmitidos inconscientemente de geração a geração".
Importa dizer que os padrões psíquicos recebem ressonâncias do ethos de cada época e são, portanto, dinâmicos. Isso a tal ponto que podemos constatar que os chamados símbolos sexuais eleitos pelo senso comum são praticamente os mesmos, seja para os videntes seja para os portadores de deficiência visual.
Se pensarmos que um ídolo do esporte, como Airton Senna, foi capaz de criar em torno de si uma verdadeira idolatria nacional graças a sua performance ao volante de carros de corrida, como entender que muitas pessoas cegas se emocionaram e idolatraram Senna, mesmo se considerarmos que sua habilidade como piloto e a plasticidade de suas manobras constituem uma "arte" eminentemente visual?
Ocorre, nesse caso, uma espécie de transcendência, ou seja, transferência da emoção apreendida pelo olhar, que repercute em nossa sensibilidade graça a combinação neurológica dos vários sentidos que criam a comunicação sinestésica, caracterizada pela relação subjetiva estabelecida entre o sentido olfativo de sentir um perfume, por exemplo, e a lembrança que esse odor desencadeia.
Em outras palavras, há uma hiperacuidade desenvolvida pelo entrelaçamento do tato, do cheiro e da audição, que possibilita a pessoa cega desenvolver uma percepção global de tal modo a ser capaz de sentir e apreciar acontecimentos "experienciados" somente pela pessoa vidente.
Os símbolos sexuais propriamente ditos, enquanto construções ideológicas estão envoltos em uma espécie de "aura de sedução e erotismo" e constituem um elo de identidade com os chamados "fãs". O ídolo representa, para nós, uma potencialidade de nossa idealização, algo a ser almejado, desejado, significando nossa impossibilidade. Elegemos nossos ídolos justamente por nos parecerem seres possuídos de habilidades, capacidades e atributos "ausentes" em nós, e que nos proporcionam prazer, uma alteridade do desejo.
Todavia, as diferenças existem e demarcam os limites dos diferentes modos de vida - o acesso, ou não, às imagens da TV; a possibilidade ou impossibilidade de dirigir um carro ou pilotar um avião, de ver a cor dos próprios olhos, entre tantas outras.
Até os serviços disponibilizados por telefone (Disque- Eróticos) e outros do gênero, os quais, ao menos em tese, se caracterizam por uma supervalorização dos estímulos auditivos, se valem de tal riqueza de detalhes visuais para atiçar a fantasia do usuário, que até apequena o sentido da audição, a começar pelas opções disponíveis: disque-morena, disque-loira, disque-ruiva, por exemplo.
Como explicita Branco (1987, p.71): Os caminhos para a intimidade de Eros não podem ser percorridos sob as luzes do conhecimento, as tão proclamadas luzes da razão. Talvez eles devam ser trilhados no escuro, com a habilidade dos cegos que não enxergam, mas tateiam, apalpam, percebem.
O universo erótico da pessoa cega é mobilizado pelos sons, sussurros, timbres de voz, toques nos cabelos e na pele; os cheiros também ocupam lugar especial na trilha da intimidade da pessoa cega. Essa realidade nos coloca diante de contradições e incoerências inerentes a uma educação que, por priorizar o sentido da visão, encobre os demais sentidos.
Em conseqüência, a relação entre a pessoa cega com a não cega fica empobrecida. Como nos dizeres de Barros; Souza; Mello, (2004, p.3 ): Os cegos também vêem. E do que vêem, os videntes tendem a ser cegos.
Massini (1994, p.27-29), ao se referir à educação da pessoa com deficiência visual, nos diz: "a supervalorização do sentido da visão (que nele falta) o impede de compreender, levando-o a uma aprendizagem mecânica... uma vez que seu referencial de percepção não é o da visão e, por ser uma aprendizagem automatizada, acaba sendo uma mera repetição de palavras desprovidas de significado para o universo do cego".
No entanto, ele dela se vale para expressar a si mesmo e aos outros o seu modo de ser no mundo. Isso decorre do fato de que o referencial de cognição da pessoa cega centraliza-se particularmente na percepção auditiva, tátil, olfativa, as quais não receberam, ainda, a devida atenção dos meios de comunicação e das políticas educacionais.
Outro interessante aspecto diz respeito ao fato de algumas pessoas cegas terem o hábito de colecionar fotografias de lugares, de amigos ou quadros de ídolos, objetos de lugares que foram imantados de significados e que lhes evocam lembranças, ainda que não visualmente. Que relação há entre uma fotografia e/ou objeto aparentemente sem função para uma pessoa cega e o universo afetivo que compõe suas lembranças?
Essa pergunta nos remete ao texto de Pimentel (2001), em que ele relata a experiência de Evgen Bavcar, fotógrafo e doutor em Filosofia da Estética pela Universidade de Paris, cego desde os 11 anos de idade. Bavcar diz que após ter passado quatro anos do acidente que o deixou cego, apaixonou-se por uma jovem e, nesse estado de enamoramento, buscou a fotografia para "fixar" em uma película alguma coisa que, de fato, não lhe pertencia. Foi a descoberta da capacidade de poder reter e possuir o que não podia mais enxergar. Essa experiência possibilitou-lhe ultrapassar os limites, as crenças e as convenções sociais acerca da dimensão da percepção visual. Segundo relato do fotógrafo Bavcar (2001, p.23), "no meu trabalho de fotógrafo, compondo a luz num espaço obscuro concebido como volume, sou consciente da separação do mundo do verbo daquele da imagem que eu quero reconciliar, ficando fiel ao iconófilo exterior que eu era, e ao iconófilo interior em que me transformei".
Dessa perspectiva, as questões cotidianas elaboradas pelas pessoas dotados de visão sobre os motivos que direcionam um cego a uma atividade aparentemente visual adquirem proporções relativas para Bavcar (2001, p.23-), que diz ser a fotografia apenas a sua maneira de "perverter" a percepção entre o modo de ser da pessoa vidente com da que é cega. Acrescenta, ainda, que "quando uma pessoa cega diz - eu imagino, ela quer dizer que consegue ter uma representação interna da realidade exterior".
Desse modo, para o vidente compreender a dimensão que os cegos vêm sem os olhos, é preciso ampliar sua própria percepção no sentido de admitir que cegos e não cegos são estimulados por diferentes linguagens, ou seja, como nos diz Barros;Souza;Mello, (2004, p.4): "Somos sujeitos, inclusive de olhares, que atuam e transformam o mundo, ressignificando-o pela mediação de diferentes linguagens, que estimulam o pensamento e o traduzem. Nossa forma de conhecer e nossa postura indagadora do mundo não está condicionada radicalmente à visualidade".
Para adotarmos essa postura, precisamos nos despir dos arcaicos paradigmas, que vêm tentando nos manter atados aos preconceitos, às descriminações e aos estigmas, como também direcionar nossa comunicação de modo a ir além do sentido visual.
Ao ultrapassar esses limites com seu ato de fotografar, uma vez que se apropria de outras linguagens inerentes aos outros sentidos, Bavcar (2001, p.22) p. expressa: "eu fotografo contra o vento... o ar em movimento me possibilita infinitas informações sobre tempo e temperatura, leituras outras sobre tipos de cheiros, ruídos, que sinalizam conexões específicas para a construção do meu mundo interior".
Assim, o universo perceptual da pessoa cega vai se alargando e atingindo outras zonas de conhecimento, muitas das quais desconhecidas por aquele que enxerga. Ter acesso a esse tipo de experiência pode, sem dúvida alguma, ampliar os horizontes de todos nós.
Segundo Pimentel (2001, p.24-23), o "visível" e o "visual" são experiências distintas, uma vez que a elaboração de imagens formadas pelo conjunto de todos os sinais originados pelos demais sentidos permite Bavcar "ver" o invisível. Assim, as imagens registradas em suas fotografias são originadas dessa memória, combinadas com a fascinante dualidade luz/escuridão. Desse modo, Bavcar (2001) consolida sua existência no mundo legando a todos nós seu modo transgressor de expressar ao mundo e a si mesmo, ou seja, "ao fotografar sem o auxílio de sua visão física, nos permite ver o invisível".Bavcar,(2001 p. 26).
Nesse seu modo transgressor de ser, Bavcar imbuído do poder do erotismo - força criadora que nos impulsiona a apreciar a vida, em sua manifestação única - ensina-nos que é possível ousar e ultrapassar o limite imposto por uma limitação, no caso, a limitação visual.
O impulso erótico em sentindo amplo nos lança a vivências extraordinárias mesmo que apenas por instantes. Nesse sentido é capaz de burlar e de abrir fissuras nas mais rígidas normas de repressão e de controle moral, de diluir preconceitos, tabus e mitos que tanto aniquilam as relações entre as pessoas, sendo elas dotadas de visão ou não.
Como linguagem humana o erotismo cria e estabelece infinitas gradações e matizes de intercomunicação que vão além da visualidade. O encontro dos amantes, a elaboração de um poema, nos momentos de meditação que intensifica a comunicação com o divino; o dialogo uterino entre mãe e filho; o caminhar confiante da pessoa cega com o seu cão-guia. Essas linguagens são paradoxalmente inclusivas-universais-individuais e únicas, pois são sentidas pelas filigranas de afeto que habitam os seres humanos.
* Maria Alves de Toledo Bruns, Docente da Pós-Graduação em Psicologia da FFCL - USP - Campus de Ribeirão Preto - SP e Líder do Grupo de Pesquisa Sexualidadevida /USP.
E-mail: toledobruns@uol.com.br
Site: www.sexualidadevida.com.br .
- Revista Brasileira de Sexualidade Humana.
Vol 20, n.1, p 173 a 177 ano 2009.
E-mail: toledobruns@uol.com.br
Site: www.sexualidadevida.com.br .
- Revista Brasileira de Sexualidade Humana.
Vol 20, n.1, p 173 a 177 ano 2009.
REFERÊNCIAS
- Barros, M.A.; Souza, E.; Mello, I. (2004) Quando a cegueira guia o olhar: notas sobre as práticas educativas inclusivas. Revista Benjamin Constant, 27, p.3.
- Bavcar, E. (2001) A luz e o cego. Revista Benjamin Constant, 19, p.24-26.
- Branco, C.M.L. (1995) O erotismo, São Paulo: Brasiliense, p.71.
- Bruns, M.A.T. (2008) Sexualidade de Cegos, Campinas: Átomo, p. 52
- Bruns, M.A.T.; Leal Filho, B. (1994) A sexualidade e o significado do olhar. Revista Viver Psicologia, 19, p.30-33.
- Castro, A.L.R.A.; Waideman, M.C. (2005) Transmissão psíquica e arquétipo: assuntos de família. In: Valente, M.L.L.C. & Waideman, M.C. (org.) E a família como vai? São Paulo - FCL de Assis-UNESP/Publicações, p. 46.
- Kehl, M.R. (2004) Fetichismo In: Bucci, E. & Kehl, M.R. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, p. 67.
- Massini, E.F.S.(1994, p. p.27-29) O perceber e o relacionar-se do deficiente visual. Brasília: Coordenadoria Nacional para integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE).,
- Pimentel, A.P. (2001) Evgen Bavcar: Um olhar além do visível, Revista Benjamin Constant, 19, p.24 -26.