“Mamãe, cadê a Gabi?”, pergunta o priminho da pequena Gabriela Ferreira da Silva, sem entender o que aconteceu com sua companheira de brincadeiras. Ele tem a mesma idade da prima e pode ser considerado um sobrevivente desta tragédia que atacou a família na noite de terça-feira (10), quando a menina foi baleada por engano. Gabriela não resistiu e morreu no hospital na madrugada seguinte (11).
Na hora de escrever sobre assuntos como este, gostaria de poder ter a mesma maestria de Khaled Hosseini, autor afegão famoso por causa dos livros Caçador de Pipas e Cidade do Sol. Digo isso porque depois que li estas obras já não consigo mais receber as informações de guerra e violência com a mesma naturalidade que antes. O autor me fez sentir a dor dos inocentes que sofrem com as guerras no Afeganistão. Aqui a realidade não é muito diferente, é como se vivêssemos uma miniguerra civil todos os dias. A violência é a mesma, talvez com números menores, mas não menos expressivos ou dolorosos.
Outra diferença entre os atos violentos do Ocidente e as intermináveis guerras do Oriente, é que em uma guerra declarada as pessoas têm a chance de se esconderem na tentativa de salvar suas vidas. Aqui, onde se diz que há paz, os crimes tomam de surpresa vidas inocentes que nem imaginavam que poderiam ser o alvo da raiva de alguém. Nesse fogo cruzado, onde tudo é resolvido na base da bala, estão pessoas comuns, que trabalham, estudam ou nem mesmo começaram nenhuma destas atividades por conta da idade precoce, mas que ainda assim têm sonhos. Sonhos que quando não são totalmente interrompidos, causam uma pausa dolorida para que a vida possa ser retomada.
Assim aconteceu com Gabriela. Ela sonhava ser pastora, amava cantar as músicas que aprendia na igreja e estava bastante animada, pois no ano que vem começaria a estudar. A família já estava até comprando roupa nova e materiais. Como fazia todos os dias, a garotinha passou a terça-feira em função de se divertir com o primo e ajudar com os afazeres da casa. Mesmo pequenina, a vontade dela era ajudar. À noite, porém, quando viu que um dos tios chegava em casa, Gabi e o primo correram para encontrá-lo, ela queria mostrar sua bonequinha para o tio. Foi aí que uma terrível fatalidade interrompeu esta história – que poderia ser linda se dependesse desta criança – mas que na guerra nossa de cada dia teve um ponto final quando ela tinha apenas três anos de idade. “Ela caiu igual a um passarinho, indefesa”, lamenta Valdeneia Ferreira, a avó que cuidava da garotinha.
A família está assustada e divide a dor com o medo de que algo parecido possa acontecer novamente. “Eu não fico mais sossegada. Cada pessoa que passa na rua e que a gente não conhece, dá medo”, explica a tia de Gabriela, mãe do menino que escapou dos disparos. “Foi um livramento ele não ser atingido, eles estavam juntos, eu não consigo mais deixar meu filho longe de mim”.
Nas paredes da casa, as marcas de tiros fazem lembrar o horror que a família passou na noite de terça e madrugada de quarta-feira. “Nós passamos a madrugada orando para que ela sobrevivesse e consolando a mãe da Gabi, que está grávida de cinco meses e teve que passar por uma situação dessas. Imagina como deve estar a cabeça dela. Ela que desesperada socorreu a menina e pegou ela caída no chão”, conta a tia, que também mora no mesmo terreno.
A triste historia da menina Gabriela não vai acabar com o quadro de violência generalizada nas cidades, assim como O Caçador de Pipas não impede que as crianças continuem sofrendo e morrendo no Afeganistão, mas a família de Gabriela espera por Justiça. “O delegado me prometeu que vai mover todos os esforços para descobrir e prender quem fez isso com minha neta. Ele disse que também é pai e sabe da dor que a gente está sentindo”, diz dona Valdeneia.
A Polícia Militar apurou que os disparos foram feitos por duas pessoas que passaram em uma moto vermelha, atirando na direção da casa. Familiares contam que o condutor da moto passou em frente a casa, fez o retorno e voltou atirando. Os disparos atingiram, além da menina, as casas e carros de familiares que estavam estacionados no local. Gabriela foi atingida na face, nas costas e nas nádegas e foi levada pelos familiares ao Hospital São Lucas, onde faleceu horas depois.
O corpo de Gabriela está sendo velado na Capela Mortuária do Bairro Interlagos e será sepultado às 9h30 horas de hoje no Cemitério Jardim da Saudade, no Bairro Guarujá.
Investigação
De acordo com o delegado da Delegacia de Homicídios, Pedro Fernandes de Oliveira, Gabriela não era o alvo da dupla que atirou, ele acredita que tudo tenha começado com uma briga entre dois grupos que estavam reunidos em um evento no Autódromo, ainda no domingo (8). Os disparos podem ter sido uma tentativa de acerto de contas, já que o tio da menina estava envolvido na briga. Segundo as investigações, a intenção dos criminosos era assustar Josnei, o tio da menina. Na segunda-feira (9), um possível amigo de Josnei, Luiz Felipe de Oliveira da Silva, baleou Tiago José de Oliveira. Luiz Felipe, que já havia prestado depoimento sobre a tentativa de homicídio a Tiago, foi reconduzido à delegacia para prestar mais esclarecimentos sobre o caso. Ontem (11), quando abordado em sua casa, Felipe tentou fugir com um revólver calibre 38 na cintura, a arma que teria utilizado contra Tiago. Ele ficará preso por porte ilegal de armas, o mandado pela tentativa de homicídio ainda não foi expedido pela Justiça.
Pedro Fernandes disse que as duas armas envolvidas na investigação estão em situação ilegal e que o acesso fácil às armas, com muitas delas vindas do Paraguai, favorece que pequenas brigas acabem em tragédias como esta. “O que se percebe é que muitas pessoas estão descontroladas. Qualquer briga na rua é resolvida com arma de fogo, com violência e o acesso fácil facilita isso. O número de apreensões por porte ilegal de arma aqui em Cascavel é muito grande”, informa o delegado.
Para Lucas
O primo de Gabriela, que brincava com a menina quando ela foi atingida por disparos, na noite de terça-feira (11), tem apenas três anos, não entende a gravidade da violência que sua prima e amiga passou e muito menos entende que escapou por muito pouco da mesma violência. Sua família está traumatizada, mas ele apenas pergunta por Gabriela, pois o que ele quer mesmo é brincar.
Numa situação dessas até que é bom ser criança pequena, a cicatriz que uma tragédia dessas pode deixar na alma é bem menor quando não se sabe direito o que está acontecendo. Assim aconteceu também com Lucas Fernando dos Santos, ele tinha quatro anos quando foi vítima de bala perdida em um tiroteio que aconteceu perto na sua casa, há oito anos, no Bairro Julieta Bueno.
O garoto brincava em frente à casa enquanto comia salgadinhos quando os disparos começaram. “Sem saber o que fazer, eu tentei fugir, mas quando eu me virei fui acertado por um tiro”. O disparo atingiu o lado direito de Lucas e ele ficou paraplégico. Hoje ele está com 13 anos.
“Eu cheguei até a chorar quando eu soube do caso da garotinha que sofreu aqueles tiros. Eu por sorte sobrevivi e a vida tem que continuar”, conta Lucas, que aparenta tem mais que seus 13 anos. Apesar do trauma que a violência causou para ele e para a família, hoje o adolescente se dedica inteiramente ao esporte. Ele pratica natação, badminton, basquete, handebol e dança. Questionado sobre seus sonhos, ele é breve: “Hoje eu nem quero mais voltar a andar. Se isso acontecer, que bom, mas eu quero mesmo é ser juiz e jogador profissional de basquete”, responde Lucas sorrindo.
Crédito: Gazeta do Paraná