RIO - Gonçalo Melo, de 43 anos, cego desde os 20, já teve que esperar quase uma hora por ajuda para atravessar num sinal. Gilvan Cavalcante de Melo Filho, de 50 anos, cadeirante desde que nasceu, conta que, outro dia, capotou por causa de buracos na calçada. No último dia 25, a vítima foi a atriz Beatriz Segall, de 87 anos, que levou um tombo ao tropeçar em pedras portuguesas soltas na calçada. O prefeito Eduardo Paes pediu desculpas à atriz, mas não faria outra coisa caso quisesse se desculpar com todos que enfrentam dificuldades de mobilidade no Rio. O município anuncia que está fazendo um diagnostico de 250 pontos turísticos e locais de embarque e desembarque de transportes públicos, criando orientações de acessibilidade. No entanto, argumenta que tornar a cidade acessível a todos não é tarefa simples, nem rápida. Para se ter uma ideia, só depois de 26 anos — e de uma condenação na Justiça — é que as empresas de ônibus cumpriram a lei 1.058/87, que garante o acesso de pessoas com deficiência física a seus coletivos.
— Preciso de ajuda desde que coloco o pé na rua. Um sinal sonoro nas travessias já ajudaria muito. Nem sempre há alguém disposto a ajudar — contou Gonçalo, que na quinta-feira passada precisou da ajuda de uma fiscal de ônibus para atravessar a Avenida Presidente Vargas, no Centro.
Gilvan, que nasceu com atrofia nas pernas, conta que os paralelepípedos e as calçadas de pedras portuguesas são o inimigo número 1 dos cadeirantes:
— Quando mal colocadas ou soltas, as pedras são armadilhas perigosas. Já caí da cadeira na calçada do Aeroporto Santos Dumont. Por sorte, não me machuquei muito.
Antônio Guerra de Oliveira, de 55 anos, que tem prótese nos quadris, só se locomove com a ajuda de muletas e reclama da falta de acessibilidade nos transportes e no comércio:
— Há lojas em que nem consigo entrar. Mas o pior são os transportes. Os novos ônibus, por exemplo, são mais baixos, mas as calçadas antigas não ficam no mesmo nível, então de nada adianta. É uma dificuldade para embarcar.
Trens, os mais criticados
E, por falar em transportes, os trens são os mais criticados, principalmente por cadeirantes. Segundo dados da própria SuperVia, concessionária do transporte, das 102 estações do sistema, apenas sete têm acessibilidade.
— Aqui no Méier, tem que desligar a escada, acomodar a cadeira e religar o sistema para o passageiro descer até a plataforma de embarque — informou uma funcionária da estação.
A cidade não é amigável também para os idosos. Além das calçadas esburacadas, percorrer grandes avenidas é um desafio. Semana passada, Suely, de 66 anos, e Célio Barbosa, de 73, moradores de Bangu, se aventuraram entre os carros para conseguir atravessar as quatro pistas da Avenida Presidente Vargas. Isso porque o sinal fica aberto para os pedestres por apenas 40 segundos — tempo insuficiente para quem já caminha lentamente.
— É muito difícil. E os motoristas não respeitam os idosos — lamentou Suely.
Moradora de Sampaio, Juracy Pacheco, de 73 anos, fez uma cirurgia no joelho e precisa de muletas para se locomover. Ela conta que, além dos problemas de articulação, um tombo na Rua Dias da Cruz, no Méier, piorou ainda mais a sua situação:
— Depois do tombo, não escapei da cirurgia. As piores calçadas estão na Zona Norte e no Centro.
Às vezes, nem é preciso haver um buraco no meio do caminho. Uma simples elevação no piso atrapalha. Na Praça José de Alencar, no Flamengo, por exemplo, a mistura de paralelepípedos com asfalto dificulta a vida dos cadeirantes.
— A mistura do velho com o novo, como tem em muitos cantos da cidade, não é boa para a gente. Aqui, por exemplo, a faixa de paralelepípedos junto ao meio-fio só atrapalha. Por que não é tudo liso? — perguntou Gilvan.
Plano é fazer 5 mil rampas
A prefeitura tem como meta a implantação, nos próximos quatro anos, de cinco mil rampas e a revitalização de 700 mil metros quadrados de calçadas. Dentro do projeto, que consta do Plano Estratégico da Cidade para 2016, estão previstas ainda a construção de pavimentos e meios-fios, a remoção de obstáculos e a colocação de piso tátil, além de faixas lisas para cadeirantes. A Secretaria municipal da Pessoa com Deficiência (SMPD) e o Instituto Pereira Passos (IPP) criaram um grupo de trabalho para mapear e analisar 250 pontos turísticos, museus e áreas de embarque e desembarque de ônibus, metrô, trem, aeroportos e barcas. O trabalho, que inclui a criação de orientações de acessibilidade, começou no último mês, e 41 pontos já foram visitados.
Para secretária municipal, o Rio foi mal planejado
Na avaliação da secretária municipal da Pessoa com Deficiência, Georgette Vidor, que é cadeirante, a cidade foi mal planejada. Além disso, as obras necessárias são as mais diversas.
— Cada quarteirão da cidade tem intervenções diferentes, o que dificulta a normatização para podermos fiscalizar. Gostaria que a situação estivesse mais avançada, mas não estamos parados. Não vamos conseguir transformar a cidade toda, é impossível, pelo menos em curto espaço de tempo. Mas podemos melhorar a acessibilidade onde há mais circulação de pessoas, como já foi feito no entorno do Maracanã, por exemplo.
Arquiteta comemora avanços
Se com os ônibus foram necessários longos 26 anos para que as empresas cumprissem a lei de acessibilidade, em outro meio de transporte a situação também não é muito animadora. O processo de acessibilidade nos trens, por exemplo, é lento. A SuperVia afirma que, em janeiro de 2011, assumiu o compromisso de realizar uma série de investimentos para modernizar o sistema ferroviário. Entre as prioridades, está a reforma das 102 estações, com um investimento total de R$ 150 milhões. Dois anos se passaram e apenas sete foram reformadas, melhorando a acessibilidade: Piedade, Quintino, Cascadura, Fragoso, Vila Inhomirim, Manguinhos e Bonsucesso.
Apesar de lentos, os avanços são comemorados pela arquiteta e urbanista Verônica Camisão, especialista em acessibilidade. Ela lembra que foi a partir de 1988, com o Movimento de Vida Independente, uma organização não governamental que surgiu da experiência americana, que se começou a pensar no assunto no Brasil.
— É um trabalho de formiguinha, mas vejo hoje outra realidade. Já existem regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas e um decreto, de 2004, para transformar as normas em lei federal. Temos que avançar mais e ter consciência de que a acessibilidade anda de braços dados com a qualidade. Uma calçada bem executada, por exemplo, já é 90% do problema resolvido — disse.
Tema fora das universidades
Ela lamenta, no entanto, que a questão ainda não conste da formação de profissionais de engenharia e arquitetura nas universidades:
— Ainda não faz parte do currículo. Algumas faculdades já têm a cadeira de acessibilidades, mas são poucas. Não existe mistério nisso, não é uma coisa sofisticada. Basta ter a consciência da diversidade entre as pessoas.
Na avaliação do professor Mário Cesar Vidal, especialista em ergonomia do Programa de Engenharia de Produção da Coppe/UFRJ, a cidade não foi feita para pedestres, muito menos para pessoas com necessidades especiais e idosos.
— Não há uma visão sistêmica para a questão da acessibilidade. Copacabana, por exemplo, é o lugar onde há mais idosos por metro quadrado, e as ruas não estão preparadas. A cidade não foi feita para o pedestre. A primeira coisa é colocar o pedestre como prioridade. O país, a cidade está ficando velha, e essas pessoas precisam ter mais conforto, uma forma melhor de vida. A cidade precisa ser pensada para o cidadão, e não para os carros — resumiu.